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Escrevo porque

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Escrevo para ver se aprendo. Para poder conversar com você, mesmo que um dia eu não esteja mais. Para expulsar os demônios e para que os cegos sintam alguma vantagem. Escrevo para desalento dos puristas. Para desânimo dos gramáticos eu escrevo. Para os insones. Contra os insetos. Porque o professor mandou e eu me acostumei. Pela eternidade de um dia. Agradar a gregos e desagradar a troianos ou vice-versa.

Para que ao menos uma alma diga que gostou. Para esquecer e fazer esquecer. No caso da goiabada não saciar o suficiente. Para que os incapazes não se sintam sozinhos.

De teimoso, de pirraça, vingança, medo e a inútil esperança de que ela leia e se entregue. Para espanto dos amigos e desconcerto dos familiares. Porque achei mais interessante do que oito horas no escritório. E porque há estrelas demais, pelo menos umas setecentas a mais.

Escrevo pela volta do trem, pela ressurreição dos vagalumes e para esclarecer a dúvida de vez. Pela paz entre os microssomos e para aproveitar o horário de verão. Para me acabar com um fim digno. Para justificar um café. Para não acabar como o leproso de Pouso Alegre. Para aplacar o cursor que fica pulsando na tela.

Escrevo quando devia estar lendo. Em vez de assar milho, fazer palavras cruzadas ou sexo. Escrevo menos que queria e mais que devia. Ainda que tudo pareça já ter sido escrito, e tão melhor. Porque o santo ou o contrário que baixa em mim é pretensioso, insaciável e quer me usar para se expor. Enquanto houver tinta na caneta, grafite no lápis, energia em casa, nos nervos e alguns dedos disponíveis.

Para ver se neva nesta terra e na esperança dos bichos revelarem de uma vez por todas que sempre souberam falar. Porque mentir só pra mim já não basta. Porque quero subir mais um degrauzinho. Porque sou muito esquisito.

Às vezes (muitas vezes) me repito ou apenas decido não escrever – e vejo que faço pouca falta.

Escrevo na pretensão de melhorar o dia de fulano que me ignora. Para que aquela coisa espantosa fique para sempre registrada. Para aplacar tanta aflição. Para não postar fotos de gatinhos, comida e muito menos falar de política. Para provar que não sou um completo imbecil: sou incompleto. Ver se a enfermeira, o síndico e a Receita Federal se apiedem de mim.

Não quero pescar, não posso viajar no momento e por isso rabisco o papel, pressiono as teclas e recorro pela milésima vez ao dicionário. Já que não sei de cozinha ou de conserto de chuveiros, não tenho saco para novela e empaquei na lição de piano.

Escrevo porque tenho à disposição 26 letras e me apresso antes que acabem com a crase.

Escrevo porque sim. Quando mais prudente seria não.

 

 

 

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