O homem que anda de ponta-cabeça
Deu no jornal (as notícias estranhas estão sempre a postos quando andamos desanimados para os assuntos): Dirar Abohou, um etíope de 32 anos, passa seis horas por dia, três de manhã, três à tarde, de cabeça pra baixo. Ou de ponta-cabeça, como diz a matéria, e eu que pensava que era um termo usado só na minha terra. Dizemos também plantar bananeira, e não me peçam para explicar o sentido da expressão, já que não parece haver algum: duvido que bananeiras sejam plantadas numa posição tão desconfortável.
Tampouco pensem que ele passa todo esse tempo parado, só espiando o mundo de seu ângulo particular. Não: o moço atravessa calçadas, ruas e pontes, sobe e desce escadas, escova os dentes, dança, se bobear até prepara o almoço, faz a barba e amor. Um espanto mesmo.
A matéria não esclarece se Dirar joga bola como qualquer pessoa ou se o faz de cabeça pra baixo, o que traria dificuldades para narrar seus lances: quando ele cabeceia, na verdade está chutando, já que usa os pés? E quando pimba na gorduchinha, chuta com as mãos, o que é falta merecedora de cartão amarelo? Não sei por que os repórteres não se preocuparam em esclarecer questões tão obviamente preocupantes.
Dirar começou a caminhar dessa maneira quando tinha 9 anos. A molecada começou a incentivá-lo, ele viu que ganhava a atenção e simpatia da escola, do bairro e das meninas (o que um homem não faz para chamar a atenção de uma mulher). Seu sonho é entrar para o Guinness Book of Records (não creio haver competidores). Só sua mãe nunca aprovou sua opção por um mundo onde céu é chão e chão, nuvem. “Tenho medo de que meu filho torça o pescoço ou caia pela montanha quando estiver sozinho”. Justa aflição de mãe que se preocupa com o filho, nisso as coisas não parecem estar de cabeça para baixo.
Para Dirar, toda conversa é ao pé do ouvido. Terra e mar vivem se misturando. Dificuldade é bater continência e a autoridade não achar que ele está faltando com o respeito. Dirar talvez se apaixone mais pelos dedos que pelos olhos e perceba mais as frieiras que as caspas. Ou seja: depois de ganhar todas as maratonas mundo afora, agora um etíope subverte também a pose dessa irrequieta raça humana. Taí um povo que é chegado em desafiar nosso tempo.
E neste mundo de muita confusão e pouco se entender, quem sabe Dirar seja o único ser humano a achar que ao menos seis horas por dia tudo está em seu devido lugar. Na sua inusitada visão, talvez veja sentido nas estranhezas todas e por isso insista em ficar cada vez mais nessa posição.
Veja o boleto do condomínio que me acaba de chegar, por exemplo: esse valor não tem o menor cabimento. Está alto feito o céu, golpe baixo como o chão. O Brasil está de pernas para o ar. De cabeça pra baixo. De ponta-cabeça. Plantando bananeira. Ah, sei lá, perguntem ao Dirar.