Preciso
Preciso ir a São José. O tempo aqui é muito apressado. Se eu tivesse ido mais vezes, teria agora 42 anos, no máximo. Longe de São José a vida é atropelo.
Preciso ir porque o céu daqui quase não tem estrela e, quando a Lua cheia nasce, não acorda os galos que cantam, pensando estar nascendo o dia. Porque foi aniversário da madrinha Rosa e eu não pude ir. Porque preciso deixar flores para os meus pais e contar a eles como vão os netos e que aprendi a passar café.
Também me disseram que o rio Pardo não anda mais pardo: como tem chovido pouco, o rio fica menos turvo e de manhãzinha sobe uma neblina das águas frias. Porque os paturis continuam a cruzar o céu pouco antes do pôr do sol, mas, sem meu pai, não há quem conte quantos são em cada bando.
Sentar entre a cabana do Euclides da Cunha e a margem do rio e pensar na vida, olhando aquela vista que sempre me sussurrou os bons caminhos. Ouvir o sino da Matriz de madrugada bater as horas, para depois confirmar o toque aos que duvidaram.
Porque sempre se encontra um conhecido caminhando na rua. Verdade que isso já foi mais verdade, mas a vida insiste nas coincidências, não encontrar ninguém na rua é um erro da civilização. Porque é preciso caminhar na madrugada, chutando a lata que batuca nos paralelepípedos. Também porque os cachorros de lá são mais civilizados, convivem bem com carros, missas e solenidades, e faz muita falta a festa de um cachorro de rua.
Certos fantasmas queridos me visitam de noite. E de dia, se a gente fizer silêncio, escuta até os bordões do seu Paulo sorveteiro, que tinha razão: checolate é mais gostoso que chocolate. Se a gente fica muito tempo sem ir, começa a acreditar que minhoca só tem em desenho animado e que leite nasce da caixinha de papel.
Porque meu irmão Paulo está lá, minhas tias e tios estão lá, meus primos, assim como meu sangue, um bom tanto das solas dos pés e as coisas que sabem melhor de mim que qualquer outro canto.
Não há mais bailes no Salão da Associação. Nem o refresco de abacaxi que era anilina só. O baleiro da dona Clarinda. Nosso Trio Elétrico já não desfila. Mas ainda há o bauru que só tem em São José. As sacadas das casas e as conversas das famílias que são o propósito das sacadas das casas. O sol atrás do Cristo cegando os olhos dos motoristas. Roscas e goiabadas. E ainda se pode bater palma para silenciar o vozerio dos pardais nas árvores.
Tenho certeza de que só o nosso Redentor trará a redenção.
Com licença, vida e urgências e distrações e violências da cidade grande. Preciso ir a São José. Preciso. Porque saudade não se mata só de lembrar, por mais agradecida que seja.