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Tô certo ou não?

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 O sujeito já estava no balcão quando entrei na padaria. Só havia espaço ao seu lado. Cheguei com o máximo cuidado para não se fazer notar. Ele parecia contrariado, olhos fixos em algum lugar que ninguém mais alcançava, de onde só tirava para se dirigir ao atendente. Pedi meu café, uma broa e só fiquei escutando.

– Você não acha que eu estou certo?

– Tem que ver – disse o balconista, esfregando o balcão com um pano mais sujo do que o balcão.

Tem que ver. Atendendo ao conselho, ele voltou o olhar para o mesmo ponto perdido, um pôster desbotado da Portuguesa campeã paulista de 1973. Pensou alguns segundos. Tinha um copo de café com leite à frente. Arrematou:

– Não sei. Mas acho que tô certo.

O “tô” em vez de estou ganhou uma tônica decidida. Pode ter sido uma tentativa de passar intimidade, mas não foi o caso. Houve uma tensão nos presentes, mesmo os que só queriam um pedaço da pizza de dois dias atrás.

– Você acha que sim ou que não?

No caminho entre o ponto vago e o atendente, seu olhar cruzou o meu. Desviei. Não queria afrontar ou discutir, ainda mais que havia acabado de chegar e nem sabia de que assunto se tratava. Quem olhou para mim como se implorasse que eu não desse opinião foi o balconista.

No exato tempo em que ele desceu o olhar, surgiu a senhora. Pediu dois litros de leite, duzentos gramas de presunto e se foi. Sua participação termina aqui. Adoraria dizer que ela chegou para pôr ordem na bagaça, mas isso não aconteceu. Ela só queria mesmo o leite e presunto.

– Verdade ou não?

– Olha, Antenor…

Antenor era seu nome. A verdade era menos incerta.

– É preciso olhar os dois lados.

Dessa vez ele não atendeu ao conselho, não procurou olhar para outro lado a não ser o ponto de sempre. Chacoalhou a cabeça, amassou um guardanapo, deu um peteleco na borda do balcão e decidiu:

– Estou com a razão. Pronto. E vou resolver isso é já.

O balconista mexeu os ombros e arcou as sobrancelhas, como a dizer “problema seu”, o que irritou profundamente o cidadão, que virou o café com leite e saiu pisando firme. Ficou um silêncio meio besta, senti necessidade de dizer algo:

– Café com broa tem seu valor.

O balconista olhou para mim impressionado com minha sabedoria. Insisti:

– Você não acha que tô certo? Verdade ou não?

Ele fechou a cara e passou de novo o pano no balcão, agora sem a menor paciência. “Outro doido, hoje o dia promete.” Desviei o olhar à procura do ponto preferido do meu colega e, quando encontrei, mirei bem e me veio a certeza de estar absolutamente certo. Tem que ver.

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