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A arte de vender lancheiras

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Miguel_2

A arte de vender lancheiras

Há uma década atrás, a Marvel Comics, uma das maiores editoras de história em quadrinhos do mundo,  esteve bem perto da falência e só não foi comprada por sua principal concorrente, a DC Comics, por conta da lei anti-trust norte-americana. A Marvel acabou escapando da degola pelo cinema, emplacando as franquias do Homem-Aranha, X-Men e Vingadores. Já a DC, deixada para trás nas vendas, resolveu agora repetir a mesma fórmula no cinema, com os filmes da Liga da Justiça a partir do futuro “Superman VS Batman”, e com seriados de televisão. O problema desta estratégia é que ela, na prática, pretende reverter a maior revolução que os quadrinhos já passaram.

Nos anos 80, os quadrinhos norte-americanos apostaram uma tendência que já estava consolidada no Japão e na Europa: histórias para leitores adultos. Ao invés de apostarem no público infanto-juvenil, a idéia era agarrar o leitor que se alfabetizou com os quadrinhos, mas não tinha mais interesse em histórias de gente com capas e cueca por cima das calças.  Os próprio americanos já haviam ensaiado algo nos anos 70, abordando temas como a contra-cultura e as drogas. E Will Eisner desenhava quadrinhos com “fotografia e linguagem cinematográfica” desde a década de 30, verdadeiros storyboards. Aliás, é creditada a ele o termo “arte sequencial” como substituto a “história em quadrinhos”. Mais do que mera nomenclatura, significativa tratar o roteiro e o desenho como arte em outro patamar.

 Neste período, a DC foi buscar escritores ingleses, onde este mercado já estava mais consolidado, com forte crítica política, muita influência pop e sem medo de tocar na ferida de tabus sociais. Entre eles, Alan Moore, pioneiro do gênero adulto e autor de “V de Vingança”, que popularizou as máscaras de Guy Fawlkes usadas pelo Anonymous e pelos ativistas de junho. E, mais tarde, Neil Gaiman, que se tornaria o primeiro roteirista de quadrinhos a ganhar o prestigiado prêmio Hugo para ficção científica e que hoje se dedica quase exclusivamente à literatura. Os desenhos também foram alçados à outra condição, como as influências pós-modernas de Dave McKean, Bill Sienkiewitz ou o traço absolutamente realista de Alex Ross.

Quando o público adulto deixou de se tornar um nicho para ser visto como um segmento, o mercado editorial abriu espaço para novos autores, novas editoras e publicações importantíssimas como os “quadrinhos-reportagem” de Joe Sacco sobre os conflitos no Oriente Médio, a alegoria do holocausto judeu em “Maus” de Art Spiegelman ou os dilemas ocidente-oriente de “Persepólis” de Marjane Satrapi.

Agora, a tendência é inversa e a ordem é infantilizar. Mesmo que não tenham sido tão afetadas pela cultura digital, como o mercado editorial de livros ou o cinema, os quadrinhos optaram em apostar novamente no público infanto-juvenil e recuar em seu status. Tornaram-se apenas mais um dos produtos orbitando em torno do carro-chefe do cinema ou TV, assim como vender lancheiras, mochilas e álbuns de figurinhas.

Junto com isso, funciona também como uma espécie de laboratório de testes para as reações do público para determinadas novidades. O resultado é bizarro. O Homem-Aranha, por exemplo, casou, depois descobriu que era um clone e não o verdadeiro, mudou de uniforme umas três vezes e mais recentemente “trocou de corpo” com seu arquiinimigo Octopus, tendo supostamente morrido, enquanto a consciência do seu inimigo assumia sua identidade (oi?).

As duas últimas novidades são a transformação de Thor numa mulher e o fato de que o Capitão América – que morreu, mas ressuscitou há pouco tempo atrás – será substituído por um personagem negro. Apesar da publicidade em torno dos anúncios, ninguém demonstrou muita preocupação, num claro sinal de que a indústria perdeu a seriedade como espaço criativo. O problema é que agora serão mais lancheiras e mochilas vendidas, mas o público adulto novamente irá se afastar, diminuindo as oportunidades para novos artistas e escritores, transformando novamente a arte sequencial em meros “quadrinhos”.

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Miguel Stédile é zagueiro, gremista, historiador e dublê de jornalista. © 2014.

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