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Annus Horribilis

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CarlosCastelo

Annus Horribilis 

Infelizmente, 2014 tem sido um ano pródigo em perda de entes queridos. De janeiro até agora foram mais de cinco, entre parentes, amigos e colegas. Um “annus horribilis”, como certa vez disse aquela rainha horrível, com cara de cu.

Curiosamente comigo, desde sempre, a comédia vive invadindo o drama sem a menor cerimônia. Quando um colega faleceu recentemente soube do triste fato em meio a uma reunião de trabalho. Estava cercado de clientes e fornecedores e mal podia respirar.

Consegui dar um jeito e me esgueirei até o corredor do prédio. Peguei meu smartphone e fiz uma busca rápida no Google. Queria encontrar alguma firma que entregasse coroas de flores em cemitérios.

Para minha surpresa havia várias. Para variar encontrei a mais insólita delas. O atendente parecia saído de um filme de Jerry Lewis.

– Flores Vivas, boa tarde, em que posso servi-lo?
– Boa tarde. Como faço pra mandar uma corbeille a um velório? Peço pelo site?
– Sim, dá para pedir pelo site. Mas então por que ligou?
– Ah,  posso encomendar as flores por aqui mesmo?
– Pode, claro.
– Que tipo de corbeilles vocês teriam?
– Muitas.
– Poderia me sugerir alguma?
– Não quer ver as opções no site? Bem melhor.

Comecei a ficar tenso. Afinal, podia-se fazer o pedido por telefone ou mezzo telefone, mezzo site? E a reunião me esperando pra decidir coisas urgentes? Respirei fundo.  E, em nome da memória do falecido, contei até 100 e fui escolher a minha última homenagem a ele na página da Flores Vivas.

Decidi pelo arranjo número quatro. Um conjunto de gérberas e margaridas com razoável direção de arte. Com isso em mãos, voltei a ligar.
– Corbeille número quatro, por favor – solicitei ao rapaz.
– Digitou a mensagem que vai aparecer escrita no arranjo de flores? – ele indagou.
– Hummm, não notei que havia esse tipo de campo pra preencher…
– Ok, só um minuto.
– …
– Mais um minuto.
– …
– Temos uma mensagem padrão: “Vai com Deus, fulano. Com amor de sicrano. Insiro na coroa?
– Você está gozando com a minha cara, não? “Vai com Deus, fulano”? Que é isso?
– Desculpe. Fulano não, na faixa vai o nome do defunto do senhor.
– Amigo, o problema não é chamar o defunto de fulano. O problema é o “Vai com Deus”. É rude, me entende?
– Temos uma opção mais direta: “Tchau”. Estaria melhor?

Eu começava a desacreditar daquilo tudo. Só podia ser algum tipo de trote.
– Não me zoe! – ralhei-o perdendo a compostura.
– De jeito nenhum, pode falar então a frase que quer e eu adiciono aqui na ficha.

Acalmei-me e informei a ele a mensagem.

Tudo parecia ir bem, quando ele disparou:
– Corbeille número quatro com gérberas e margaridas. Entrega imediata. Confere?
– Confere.
– Não prefere o combo seis? Corbeille com rosas azuis, magnólias e acácias. Levando esse o senhor não paga taxa de delivery e ainda ganha um bônus que pode usar nos próximos falecimentos. Vamos nesse? É lindo, viu?

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Carlos Castelo. Escritor, letrista, redator de propaganda e um dos criadores do grupo de humor musical Língua de Trapo. © 2014.

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