
Arara azul
Fui à padaria, fiz lá umas compras e, no caixa, levei um tanto de bala. Não dessas que a gente recebe de troco em vez de moedas, já com má vontade com as pobres e com a pobre da caixa. Não, eu comprei mesmo as balas, livre iniciativa pura. Chego no prédio e ofereço uma ao porteiro. Sua reação vira a crônica.
A gente deixa de ser criança no dia em que deixa de gostar de bala. “Gostar”, aqui, merecia um verbo mais preciso. Porque não é de simples gostar que se trata. Gosta-se de praia, de batata frita, de massagem no pé, de Ella. Mas com bala, a pessoa se transforma, regride. Ofereça uma bala de sopetão a alguém e veja que o riso vem facinho, de verdade, como se do nada tivesse aparecido uma arara azul.
Vi esse mesmo sorriso na boca de uma senhora no interiorzão da França. Ela me perguntou de onde eu vinha e, quando lhe respondi que era do Brasil, ela me olhou como se eu fosse uma arara azul. Isso nos idos de noventa, tempo em que não se achava brazuca mundo afora, quando nossa imagem ainda era meio mágica, surreal, misto de pescador de Verger com tocador de reco-reco, babalorixá e índio canibal.
Reparo que as balas mais moles, como as Chita, fazem mais sucesso que as duras, tipo drops. Meu pai preferia Mentex (ainda existem?), mistura das duas. Ele gostava sempre das coisas mais amargas, sorvetes ácidos, como maracujá e limão; frutas cítricas, balas azedinhas – talvez para contrabalançar seu jeito doce.
Imagino uma cena estúpida. Numa passeata, os manifestantes se encontram com o cordão policial. Caras e gestos tensos, barricadas em chamas, gritos, empurra-empurra. Eis que, no auge da tensão, a polícia lança sobre a turba, não bombas de gás lacrimogêneo ou de efeito moral, mas balas, centenas de balas de framboesa, abacaxi, menta. Balas como as que meu avô comprava para a gente, nos deixando escolher no baleiro que girava no balcão do bar da dona Clarinda.
Fico imaginando que a turba ficaria mais calma. Os manifestantes, por sua vez, reagiriam atirando punhados de balas de volta nos policiais e que, na pausa das pessoas desembrulhando suas balas, as coisas iriam se acalmando. Talvez um lado até entendesse as razões do outro e não se ofendessem nem agredissem mais, sei lá, é só uma ideia – bala deixa a gente assim, meio mole.
Ou nas reuniões de negócios: nunca deveria faltar bala. Mas que não fossem deixadas disponíveis num pote à mesa, facinhas, banais, elas perdem o encanto. Ofereça-as de surpresa, para desorientar as importâncias, deixar os mandatórios sem chão. Se mesmo assim não der certo, pegue o papel da bala e sopre entre os lábios. Assobie algo que mostre que aquela reunião já devia ter acabado há uma hora. Ou que os assuntos em questão não têm urgência alguma. Geralmente funciona.
Mas fiquemos por aqui, o porteiro do prédio já sorriu, agradeceu, abriu a porta. E essa crônica, que ficou mais melada que aquela bala que a gente guardou no bolso da calça para chupar mais tarde, e encontra de surpresa, semanas depois. E com dedos grudentos, enfia na boca de relance, escondido. Se alguém descobrir seu gesto, seja firme: aponte para o céu e grite o disfarce: Olha, uma arara azul!
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Cássio Zanatta é natural de São José do Rio Pardo, o que explica muita coisa. Escreve crônicas há um bom tempo – convenhamos, já estava na hora de aprender. © 2014.