Mais ou menos na mesma época em que os bretões estabeleciam as primeiras regras para o futebol, Karl Marx iniciava um artigo, na mesma Inglaterra, com uma frase de efeito: a história só se repete como farsa ou como tragédia. Impossível não pensar nesta máxima, enquanto se lês dois bons novos livros sobre a Copa de 1950 no Brasil, O inverno da Esperança: como a Copa do Mundo de 1950 chegou ao Brasil e por que ela partiu o coração dos brasileiros de Maurício Brum (Fronteira/Amazon) e Uma triste história de futebol no Brasil: o Maracanaço de Gerson Wasen Fraga (Mérito).
Com a habilidade de um GIgghia nas letras, o jornalista Mauricio Brum domina o leitor como quem domina a bola na intermediária e leva até a meta final do adversário, obrigando a leitura de um só fôlego do itinerário que leva da disputa por sediar a Copa, primeiro com os alemães e depois com os argentinos, aos bastidores da organização. Sem que o autor precise resvalar em paralelismo, fica fácil encontrar os aspectos comuns na preparação dos dois eventos: as disputas políticas entre as sedes, o atraso nas obras, os valores que crescem exponencialmente. Mas fica evidente também o quanto futebol e a Copa já foram algo mais simples e quase ingênuo antes do predomínio da lógica do espetáculo e da mercadoria. E fica ainda uma sensação de que seria possível organizar, hoje, uma Copa no Brasil com menos exageros e elefantes brancos, como foram na Itália , Estados Unidos e França (respectivamente 1990, 94 e 98), onde apenas os franceses construíram um único novo estádio.
Por sua vez, o historiador Gerson Wasen Fraga joga com a racionalidade de um Obdulio Varella, e como o uruguaio , resultando também numa obra de beleza e conteúdo. Sem abrir mão dos rigores da ciência, Fraga tem um texto fluído e leva o leitor a investigar a alma nacional: o que estava em jogo em 1950 não era uma Copa, mas a visão que o país tinha de si mesmo. A tragédia, o Maracanaço, despedaça o sonho de nação desenvolvida que quer se mostrar para o mundo e revela uma sociedade nada harmônica, pelo contrário, por trás do complexo de vira-latas que emerge da final no Maracanã, se escondem antigos preconceitos raciais e sociais, envernizados por intelectuais e intérpretes do país.
Como toda obra em seu tempo, os dois livros falam de 1950, mas através deles, nos remetem a 2014. A Copa não é apenas um mega-evento e a seleção não é apenas uma equipe. Em campo, vão entrar não apenas a expectativa daqueles que, para nós, o futuro finalmente chegou, mas também as frustrações daqueles que a Copa marginalizou. E ainda aqueles para quem a Copa confirmaria nosso eterno complexo de vira-latas, nossa incompetência em organizar qualquer coisa, eternizado pelo bordão “imagina na Copa”. Depois da derrota de 1950, Fraga mostra como, fora de campo, o mito da harmonia nacional do projeto nacional-desenvolvimentista fez água. Dentro de campo, Brum demonstra como a seleção brasileira precisou se reiventar, aposentando inclusive as camisas brancas e adotando a amarela. Talvez a Copa sirva para isso, para o país se repensar e se reinventar. Desta vez, nem como farsa, nem como tragédia.
Por Miguel Stédile (@irredutiveis)