
Cantiga 2015
O cravo brigou com a rosa. Deu até reportagem no programa sensacionalista. Viviam tão bem, alegravam o quintal da casa, pareciam um casal tipo amor-perfeito, quem poderia dizer. Mas brigaram grande, barraco feio no jardim.
Debaixo de uma sacada – dizem testemunhas que, mesmo impressionadas com a violência da coisa, não tomaram partido nem apartaram, nem quando a briga descambou para botânica pancadaria.
O cravo saiu ferido. Levou uma pazada na testa. Pá que havia sido esquecida ali pelo jardineiro, sujeito desleixado que, não cuidando direito do jardim, muito contribuiu para o clima tenso que reinava.
E a rosa, despedaçada. Em sua defesa, o cravo diz que o golpe de pá desorientou sua cabeça. O fato é que, dizem, ele partiu para cima da fêmea e pôs-se a desfolhá-la. O caso foi registrado na Sexta Delegacia da Mulher pela delegada Feitosa.
O cravo ficou doente. Chamaram a ambulância, que até veio rápido, mas o pobre estava febril e desfalecido. Foi levado para as Clínicas às pressas, mesmo com o trânsito difícil da Rebouças.
A rosa foi visitar. No fundo, ficou um carinho. O que houve foi desespero, um desequilíbrio. Uma história não morre por um capítulo infeliz. As mulheres e seu imenso poder de perdoar.
O cravo teve um desmaio. Era outro, perdia os sentidos por qualquer coisa, perdeu a memória, deu para beber e para dar em cima de qualquer maria-sem-vergonha que lhe cruzasse o canteiro.
E a rosa pôs-se a chorar. Ficava lá num canto, cantando uma cantiga antiga, que falava de um cravo e de uma rosa em tempos mais felizes. Foi murchando, adoeceu dos nervos, perdeu cor, perfume, deixou crescer os espinhos e foi parar num hospício que nem jardim tinha. Passa os dias sozinha, cantando repetidamente um refrão incompreensível que nada, absolutamente nada, tem a ver com a história toda Palma, palma, palma; pé, pé, pé; roda, roda, roda; caranguejo, peixe é.
Tadinha. Pirou. Não consegue mais juntar lé com cré, para citar outra canção daqueles tempos. Qual o sentido desse último verso? Alguém aí um dia achou mesmo que caranguejo fosse peixe?
E que país era esse, cuja tristeza parecia caber toda numa cantiga mas que, de repente, parece que o jardim desandou, murchou, virou uma pancadaria sem fim, um esterco só, sem jardineiro, sem rosa, sem riso, sem viço, sem música, sem nada?
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Cássio Zanatta é natural de São José do Rio Pardo, o que explica muita coisa. Escreve crônicas há um bom tempo – convenhamos, já estava na hora de aprender. © 2014.