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Cidade Jardim, 280

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CassioZanata

Cidade Jardim, 280.

O vendedor de bilhetes de loteria não vende mais bilhetes de loteria.
Passa os dias sentado, olhos no nada, procurando entender por que ninguém mais compra bilhetes de loteria. Pelo menos dele, não.
Compram na lotérica, na internet, fazem suas apostas em vaquinhas de escritório, mas seu tempo passou rápido como essa Ferrari zerinho humilhante de tão linda.
Fica ali, à espera dos pouco clientes fiéis. A quem resta ter fé em que a sorte lhes devolva em dobro a atenção que lhe dedicam, com uma vida despreocupada das aflições do dinheiro.
Sorri ainda menos que vende. Passa o dia praguejando em silêncio contra o que quer que seja. Resmunga contra os dias que lhe traíram.
Se pelo menos não tivesse que andar pra lá e pra cá, fugindo do sol, do cobrador, da fiscalização, do olhar piedoso.
Assiste às pessoas correndo para pegar o ônibus sem sequer parar para uma arriscadinha. Não sugere o cachorro, não promete a cobra, não arrisca palpite. Tem um band-aid pendurado na sobrancelha, que insiste em despegar. O olhar duro não ajuda e quando chove o lamentável fica ainda mais.
Toda semana sai o resultado: perdeu. Toda semana volta ao ponto, acenando sem entusiasmo com a redenção do próximo sorteio.
Aos incautos que ainda creem. Que ele já se desencantou.
Sorri sem a menor simpatia, sarcasmo nos dentes que rangem, feios do mais feio ressentimento.
Fica ali, mascando seu chiclete e sua raiva. Ou não será chiclete, talvez um pedacinho do bilhete mastigado que jamais será premiado.
E dessa baba que se alimenta de rancor e se realimenta de rancor até se engasgar de rancor, só se perde.
Sua conversa não encaixa mais. Não há mais brilho nos olhos de quem ouve sua divagação. Seu encanto passou. Ficou só essa
ferida nojenta no braço de que ninguém se condói. Tá rindo de quê, minha senhora?
Houve um tempo em que ele mandava no bairro. Interrompia reuniões, fazia figurão atravessar a rua, era convidado para cafezinho.
Hoje esse miserê, ninguém tem consideração nem dinheiro.
O dia está acabando, é sua vez de correr atrás do ônibus. Uma última olhada de soslaio, para ver se – ninguém vem. Ê, pobreza.
Onde mora o vendedor de bilhetes de loteria? Em que templo da decadência, erguido com paredes que ficaram na promessa, ele se
ilude? Haverá companhia na sua solidão? No fundo, ele acredita?
Quase dá para ouvi-lo dizer à senhora ao seu lado no ônibus que, assustada, puxa para o lado e esconde seu pacote: um dia ainda
ganho na loteria e mando essa gente à merda.

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Cássio Zanatta é natural de São José do Rio Pardo, o que explica muita coisa. Escreve crônicas há um bom tempo – convenhamos, já estava na hora de aprender. © 2014.

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