
Lá onde Judas perdeu as botas
O tão esperado feriadão chegara. Mas sempre era assim: confusão no pré-check-in.
Ainda mais com criança pequena. É dar aquela última olhada se a papinha está na bolsa térmica laranja, se os lenços umedecidos estão na mochila à esquerda da valise de patinhos.
Já estávamos quinze minutos atrasados pra pegar o carro e sair rumo ao aeroporto, a garagem agendada, os bilhetes confirmados. E não conseguíamos partir. A bebê chorando, a Noêmia tropeçando em mamadeiras, eu emburrado.
Finalmente demos a largada. Todos em silêncio no veículo quando, já em plena Marginal, a Nôemia soca o painel e berra: “cacete, esquecemos o GPS!”.
Tínhamos trazido o aparelhinho de Foz do Iguaçu e pegado o vício de carregá-lo até quando íamos à esquina.
Estressado retruquei usando apenas o canto da boca:
“Já foi, vamos sem GPS, seja o que Deus quiser”.
Começou a escurecer e veio aquela fechada do treminhão. Eu não perco essa mania de ir pela pista de direita, devo ser um reacionário enrustido. Tive que dar uma meia esterçada pra não bater na ambulância que vinha, a toda, pela esquerda e cai numa vicinal paralela à via expressa.
Julguei que sairia logo mais à frente novamente na Marginal.
Lêdo engano. Começou a aparecer uma paisagem completamente diferente. Barracos, vendinhas de pinga, e outras coisas que me recuso a comentar. Noêmia implorava, entredentes, num mantra: “acelera, acelera, acelera!”.
Obedeci.
A bebê e ela acabaram caindo no sono. Quando vi estava, pelos meus cálculos, a uns 150 quilômetros do aeroporto. Um breu enorme e, pior, um dos pneus tinha estourado.
Deixei-as dormindo pra evitar maiores sobressaltos. Depois de uns 20 minutos, em completo isolamento, finalmente dei sinal a uma van e despertei-as. Entramos os três na condução e pedimos ao motorista que nos deixasse num local mais central, onde houvesse um ponto de táxi.
O ensimesmado homem sequer nos olhou. Seguiu acelerando o sacolejante coletivo. A vibração na carroceria era ainda maior pois só estávamos nós quatro ali dentro.
Foi quando sobreveio a tempestade. Tivemos de nos abrigar na parte de trás, todo o resto da estrutura estava furado e o toró entrava sem dó, nem piedade. Havíamos esquecido de tudo, só nos interessava proteger a bebê daquele ambiente hostil e encharcado.
Não sei dizer quantas horas passamos sob a intempérie. Muito menos onde estávamos. Pelo tempo que havíamos saído de casa, o aeroporto devia estar muito longe daquela zona desconhecida até do Google Maps.
A chuva acabou cedendo. O motorista, exaurido, parou a van na frente de uma casa abandonada em meio à bruma da madrugada. Resolvi descer, estirar as pernas, fumar um cigarro e ver se havia sinal de celular.
Fui andando pela estrada de terra batida e parei em frente à velha residência. Depois de alguns instantes, a porta deu um grande rangido e se abriu.
Aí lá de dentro saiu o Belchior.
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Carlos Castelo. Escritor, letrista, redator de propaganda e um dos criadores do grupo de humor musical Língua de Trapo. © 2013.