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De-já-vi

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Já vi você outras vezes.

Você é a garota que atravessa a rua todos os dias por volta das oito da manhã invariavelmente apressada. Passa rápido e preocupada, comendo algo que seja leve e razoavelmente saudável. Também invariavelmente derruba parte desse algo leve e razoavelmente saudável que está comendo no chão – e é então que torce a ponta do nariz assim, meio de lado, enquanto solta algo ininteligível.

Mesmo. Já vi você outras vezes.

E sempre que está atravessando a rua com pressa e se vê obrigada a esperar um carro passar, olha o relógio. Não sei se é toque (ou tique), mas olha. E sempre reprova o aparente rápido andar dos ponteiros. Mas, quando nada lhe detém, você cruza o asfalto com um trote cinicamente belo e aparentemente ensaiado em alguma escola de balé.

Acredite: já vi você outras vezes.

De quando em quando – e esse quando é quando chove –, você sai com um grande guarda-chuva amarelo. Tão grande e tão amarelo que, daqui de cima, faz a rua parecer um pomposo balcão de padaria onde os carros são pãezinhos, os ônibus são bombas de chocolate e onde você se sobressai docemente como um imenso e saboroso quindim.

Não ria, é tudo verdade. Já vi você outras vezes.

Porém, quando o dia está quente – e por quente entenda-se muito quente –, você muda radicalmente. Prende o cabelo, coloca um vestido colorido, sandália, óculos com as laterais cuidadosamente ovaladas e anda mais contida. Ainda apressada, ainda comendo algo leve, ainda derrubando parte desse algo, ainda torcendo a ponta do nariz, ainda falando algo sem som, ainda tudo isso… mas contida.

Eu sei, não tem explicação, mas pode confiar. Já vi você outras vezes.

E vai ser num desses dias de calor que vou tomar coragem de descer. De trombar em você sem querer. De pedir desculpas com meu jeito extremamente confuso. De me apresentar e perguntar seu nome. Sua idade. Profissão. Se não gostaria, talvez, de continuar este papo no café da esquina que você cruza diariamente e invariavelmente apressada sem nunca ter entrado. De pegar sua mão. De ganhar a sua confiança. Um beijo. Dois beijos. Seu telefone. O coração. E, muito provavelmente, uma vida toda.

Ou talvez, quem sabe, seja melhor continuar te admirando de longe. Afinal, já vi você outras vezes.

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Henrique Rojas – mas pode chamar só de “Rôrras” – é redator, palmeirense, paulistano e um observador nato de pessoas. ©2014.

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