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Entre o fato e a lenda

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Entre o fato e a lenda

Já dizia um antigo faroeste: entre o fato e a lenda, publique a lenda. O cinema brasileiro descobriu há pouco o filão das biografias, em especial das musicais. E escolheu personagens polêmicos, como Cazuza, Renato Russo, Paulo Coelho/Raul Seixas e agora Tim Maia. Mas, entre o fato e a lenda, o cinema tem preferido preservar a lenda e poupar o público dos fatos.

Há uma razão simples para isso. O público-alvo deste nicho são, em primeiro lugar, os fãs. E a relação entre fãs e ídolos é sempre delicada, idealizada. Quebrar esta relação é arriscado. Kurt Cobain foi um dos meus ídolos de adolescência. Quando terminei de ler “Mais pesado que o céu”, a vigorosa e honesta biografia de Cobain, escrita pelo jornalista Charles R. Cross, me senti um pouco idiota ao perceber que o porta-voz da minha geração estava muito aquém da imagem que eu havia construído.

Além disso, muitos filmes precisam do consentimento ou aprovação familiar. Neste caso, drogas, adultérios e egoísmos não convêm às imagens que as famílias pretendem preservar.

Como resultado, cabe aos cineastas, algumas manobras. Condensar muitas pessoas em poucos ou em único personagem, como em “Somos tão jovens”, quando os amores juvenis de Renato Russo se transformaram em uma única personagem fictícia. A canção “Ainda é cedo”, que segundo algumas interpretações poderia ser uma referência à cocaína, se converteu em pedidos de desculpas ou declaração de amor à esta personagem, que sequer existiu. Em “Tim Maia”, pessoas mais próximas ou personagens-chaves simplesmente desaparecem, “por opção artística”.

Se tratando de personagens que ainda estão vivos ou que são icônicos, o risco da caricatura também está presente. É o caso de Raul Seixas em “Não pare na pista” ou Roberto Carlos em “Tim Maia”.
Por outro lado, em comum, as cinebiografias musicais, por hora, tem como vantagem grandes interpretações e atores que não se temem a tarefa de encarar personagens tão polêmicos, quanto conhecidos. Foi assim que “Cazuza” revelou Daniel Oliveira e “Somos tão jovens” projetou Thiago Oliveira (que já havia interpretado Luciano, irmão de Zezé di Camargo em “2 filhos de Francisco”). Já “Não Pare nas pista” deu visibilidade nacional ao competente e maduro Julio Andrade, assim como “Tim Maia” ao igualmente curtido e talentoso Babu Santana.

Optar pela narrativa lendária ao factual não significa enriquecer, necessariamente, a trajetória do ídolo. Ao contrário, confrontar-se com seu ídolo e percebê-lo com todos os desvios e fraquezas, o tornam mais humano e, portanto, mais próximo de qualquer um de nós do que uma distante projeção ideal.

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Miguel Stédile é zagueiro, gremista, historiador e dublê de jornalista. © 2014.

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