
Inimigo meu
Difícil entender o inimigo. Difícil admirar o inimigo. Mais difícil ainda é admitir que se tem inimigos (não, no singular é mais suportável, parecem menos do que são). Eu que me achava tão incrível.
No entanto, tenho um inimigo. Como você, como seu pai, como o bedel do colégio ou sua tia Gertrudes. Meu inimigo não me suporta, fala mal de mim pelas costas e, mais dolorido, às vezes pela frente. Sou ridicularizado em público pelo meu inimigo e o pior: ele é inteligentíssimo. Por isso às vezes me pego com uma bazuca imaginária, destroçando meu inimigo, seus pedaços voando em câmera lenta pelos ares. Ou cravo em seu pescoço 32 facadas. Varo seu fígado com um espeto de churrasco, mostrando vitorioso quanto fel havia ali. Sorrio realizado por dentro mas, agindo assim, dou total razão ao meu inimigo. Sangue misturado em picanha, ele diz, vitorioso: “Não falei?”
Meu inimigo me descontrola. Não tenho defesa contra seus ataques, eles me paralisam; levo dias para devolver uma resposta que nunca dou. Sei perfeitamente quando ele está, sinto a pontada; por mais turvo, o ódio é claro.
Estranho é que temos amigos em comum. Os pobres desavisados o elogiam a mim e a recíproca deve acontecer. Não sei se o fazem com boas intenções, mas assim só alimentam nosso mal querer. Façam a bondade de não falar mais nele, cegos ou ingênuos.
Mas afinal, por que me odeia meu inimigo? Por que o quero tão mal? Somos até parecidos. Temos tanto em comum. Algo nos separou em definitivo pelo caminho. Um ponto de vista diferente, uma discussão sem importância, uma ironia mal colocada, algo acendeu uma sombra sobre nós. Sombra de uma nuvem escura, carregada de trovões incontroláveis, que por sua vez formou-se de uma lufada do mais azedo dos enxofres.
Será que ele quer minha vaga, minha mulher, meu cabelo, minha vida? Não creio. Ele preferia mil vezes me ver acabado, suplicando por ser bem quisto, do que ficar com algo de meu. O inimigo não tem a menor inveja de mim – só raiva, imensa. Adoraria me ver com leucemia. Daria socos no ar ao saber que um trem esfarelou minha perna. Que eu subitamente fiquei cego ou ridiculamente zarolho. E não me é difícil admitir: sinto o mesmo, inimigo meu.
Aos olhos do leitor, eu seria tão mais bacana se não confessasse isso. Mas estaria mentindo. Tenho um inimigo, ué. Que me espreita, me denuncia, me diminui, me corrói. E para minha desgraça, é um bom sujeito.
__________________________________________________________________________________________________________
Cássio Zanatta é natural de São José do Rio Pardo, o que explica muita coisa. Escreve crônicas há um bom tempo – convenhamos, já estava na hora de aprender. © 2014.