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O velho relógio

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CassioZanata

O velho relógio

É um relógio antigo, um oito de cabeça para baixo. Uma belezura do início do século XX, fabricada pela casa Willian L. Gilbert Clocks, de Connecticut, USA. Herança de meus pais, ficou três anos parado no meu armário. Sei lá, achei que seria meio desrespeitoso ele sair badalando por aí em meio ao silêncio dos donos.

Achei no Centro um especialista que o consertasse, o que me levou semanas e dinheiros. Agora está na parede de casa, estranhando o movimento – ele, que passou a vida (a minha, posso garantir) na sala da nossa antiga casa. Deve estar ansioso para funcionar de novo, para isso foi criado por mãos precisas.

Entre tantas coisas que eu gostaria de saber fazer nessa vida – tocar piano, cozinhar frango com quiabo, fazer baliza – está a capacidade de entender de relógio. Sempre tivemos uma relação respeitosa mas fria, no fundo sabendo que a um não cabia desvendar os segredos do outro. E agora, ei-nos frente a frente. Eu, com uma borboleta original de dar corda em uma mão e, na outra, um pêndulo a ser encaixado em algum lugar que não faço ideia, para fazer funcionar seu antigo mecanismo.

Abro a portinhola menor, a de baixo, tateio seu interior e encontro na parte superior um gancho onde o pêndulo deve ser colocado. Penduro a peça e ela se instala como se fosse plenamente sabedora de seu lugar nesse mundo. Com certa cerimônia dou corda, há dois buracos. Um, giro com cuidado para a direita e tudo parece ir bem, o relógio parece incentivar uma habilidade que não tenho. Epa. O outro empaca. Insisto com medo de quebrar algum troço centenário e descubro que agora devo girar em sentido contrário. Dou corda para a esquerda e a perfeição se faz.

Pausa para uma homenagem aos respeitáveis funcionários da Willian L. Gilbert Clocks, de Connecticut, USA. Saibam os senhores que no ano da graça de 2014, em um país obscuro e distante chamado Brasil, um bicho do mato, com até um pouquinho de sangue índio nas veias, misturando-se a outro tanto italiano, português e até umas gotas de irlandês, mas como dizíamos, esse quase silvícola, foi capaz de fazer funcionar um antigo relógio de sua fabricação, adormecido há tempos, o que só comprova a competência dos cavalheiros.

Muito bem. Encaixei o pêndulo, dei corda, agora é fazer o pêndulo oscilar. Dou um leve impulso e lá vai ele em seu conhecido e paciente tiquetaque. Para parar segundos depois. Lembro de meu pai ensinar que era preciso encontrar o prumo perfeito, senão as horas parariam. Como isso teria sido útil às vésperas das provas bimestrais – mas não percamos tempo com devaneios, voltemos ao relógio.
Inclino pouca coisa o relógio para o lado, ainda não encontro o prumo, tento mais algumas vezes até que o pêndulo reconhece a posição e oscila com antiga certeza.

Acerto o horário movendo os ponteiros delicados e, a cada hora cheia a que chego, soam as badaladas familiares. Seis horas: a porta vai abrir e meu pai vai surgir assobiando para ir trabalhar. Sete: meu irmão do meio vai passar por esse corredor, engolindo atrasado o pão com manteiga. Oito: meu irmão mais velho vai passar de branco para o trabalho. E antes que chegue as nove, minha mãe vai sair para a feira, apressada, prometendo trazer mangas.

Paro por aqui. Esse texto é sobre certezas, mecanismos exatos, precisão. Não é hora desse olhar de repente submerso, nem dessa súbita vertigem, que pêndulo algum apruma.

O velho relógio que siga em frente.

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Cássio Zanatta é natural de São José do Rio Pardo, o que explica muita coisa. Escreve crônicas há um bom tempo – convenhamos, já estava na hora de aprender. © 2014.

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