
Agora o The São Paulo Times conta com uma coluna dedicada à poesias chamada “Poética Urbana”.
Ela será publicada toda sexta-feira. Para colaborar envie sua poesia para poesias@saopaulotimes.com.br.
ANIVERSÁRIO
(Ruy Espinheira Filho)
Metade do tempo consumada
ou ainda mais.
No peito, a mesma fome, a mesma sede
do menino, do rapaz.
O mesmo olhar perplexo
o mesmo
sem resposta
gesto crispado interrogando.
(É dezembro
e noite e abro a janela
e vejo outras janelas iluminadas.
Ali há vida, como na rua, como
no campo e no mar e nos velozes
aparelhos que cortam o espaço
e
talvez
noutros planetas e universos.
Como há incontáveis séculos e
provavelmente
amanhã. Mas tudo rápido
demais
que nem nos podemos saber
e partimos
no mesmo escuro em que chegamos.)
Perdi colegas, namoradas, cães.
Perdi árvores, pássaros, perdi um rio
e eu mesmo nele me banhando.
Isto o que ganhei: essas perdas. Isto
o que ficou: esse tesouro
de ausências.
(A noite avança e as janelas
aos poucos
se apagam. No silêncio
meu coração permanece
iluminado. Eis que trabalha, fiel,
mesmo quando revela
a si mesmo em breve imóvel
ou, depois, a última estrela
sem testemunhas
no céu final.)
—-
CANÇÃO MATINAL
(Ruy Espinheira Filho)
Acorda bem cedo o homem
da casa de telha-vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.
E eis que a vida não é mais
nem triste, nem só, nem vã.
É doce: cheira a goiaba
e brilha como romã
orvalhada. E ele caminha,
o homem, com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.
Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã
é a própria alma do homem
da casa de telha-vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.
—-
CAMPO DE EROS
(Ruy Espinheira Filho)
Amor: esta palavra acende uma
lua no peito, e tudo mais se esfuma.
E testemunho: eis que Amor deixou
ferida cada coisa que tocou.
E tudo dele fala: a mesa, a cama
(como abrasa este hálito de chama!),
o bar, cadeiras, livros e paredes
vivem, revivem: de fomes e sedes
a corpos saciados. Tudo fala,
tudo conta. Só a boca é que se cala.
Amor. Do extinto pássaro, o vôo
prossegue, inexorável. Mas perdôo,
eu, essa lâmina que me escalavra,
revolve em mim, em sua funda lavra,
amor, restos de amor, gestos quebrados,
enganos, mais amor, olhos magoados,
e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor.
E a Quimera. E amor, amor, amor
por toda parte trucidado e em flor.
—-
CANÇÃO DE DEPOIS DE TANTO
(Ruy Espinheira Filho)
Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.
Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.
Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.
Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.
—-
BLIND BORGES
(Ruy Espinheira Filho)
A vasta e vaga morte, esse outro sonho,
não é só outro sonho: é a mais remota
ilha de ouro a que nossa derrota
nos leva, inexorável, sonho a sonho.
Latidos pelos cães, sonho após sonho,
sonhamos. Esta é a vida, a vela, a rota
do homem: sonhar. E em áurea praia ignota
sonha o que sonha o sonhador, que é sonho.
Isto é o que pulsa em nós: o ansiado ouro
— distante e aqui, no coração —, tesouro
cuja procura tece a nossa sorte;
rumo que a alma singra e sagra em ouro
até chegar enfim a esse tesouro
incorruptível que nos sonha a morte.
—-
SONETO DA TRISTE FERA
(Ruy Espinheira Filho)
Quanto mais o olhar acera,
recrudesce a noite vasta,
restando apenas à fera
as trevas em que se engasta.
Choramos, era após era,
esta carência que pasta
entre escombros de quimera
tudo aquilo que não basta
a nós, esta triste fera
que vê só o duro luzir
desta, mais fera que a fera,
condição que a vergasta:
corpo — o que nos vai trair;
e alma — o que nos devasta!
—
Ruy Espinheira Filho, poeta, jornalista, mestre em ciências sociais e doutor em letras é professor da Universidade Federal da Bahia. Autor de uma produção densa e diversa.
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Poética Urbana. © 2014.