
Agora o The São Paulo Times conta com uma coluna dedicada a poesias chamada “Poética Urbana”.
Ela será publicada toda sexta-feira. Para colaborar envie sua poesia para poesias@saopaulotimes.com.br.
SONETO 274 PACIFICISTA
(Glauco Mattoso)
Apelos pela paz são comoventes:
Parece até que toda a raça humana
ou quase toda, unânime, se irmana
na firme oposição aos combatentes.
Campanhas e cruzadas e correntes
envolvem muita mídia e muita grana,
mas nada se compara à força insana
do génio armamentista em poucas mentes.
Pombinhas, flores, nada disso importa
na hora da parada militar,
se acharmos que o perigo bate à porta.
A fim de protegermos nosso lar,
deixamos que haja tanta gente morta,
mas não aqui: só lá, noutro lugar.
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SONETO REMONTANDO A 1951
(Glauco Mattoso)
Minha cronologia principia
no dia de São Pedro. De glaucoma
já nasço portador, mas, nesse dia,
só querem que se beba e que se coma…
Sou neto de italianos, e a mania
é dar diminutivos: no idioma
de Dante, sou Pierin. Me oferecia
um brinde o bisavô, que vinho toma…
Pierin, ou Piergiuseppe, dura pouco.
Já sou Pedro-José. O ouvido mouco
não é, mas um dos olhos já pifava…
Na foto, faço gestos algo obscenos,
unindo dois dedinhos: já pequenos,
mostravam a revolta: “Vão à fava!”
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SONETO REMONTANDO A 1952
(Glauco Mattoso)
Não lembro, mas disseram que precoce
eu fui para falar. Como não há
registro em gravação, resta que esboce
algum palpite a raiva que me dá”.
“Nenê tá puto!” (pausa para a tosse)
“Pude! Toma no eu! Gugu! Dada!”
E assim, antes que minha voz engrosse,
já digo aonde quero que alguém vá…
Falei bastante coisa, mas a minha
mamãe só recordava uma abobrinha
ou outra, como aquela expressão brava…
Agora que ela é morta, ninguém pode
dizer que um bebê, quando alguém se fode,
risada dá, gostosa como eu dava…
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SONETO REMONTANDO A 1999
(Glauco Mattoso)
Me veio sem aviso: após o gozo
noturno, entre uma insônia e um pesadelo,
percebo que a memória é poderoso
recurso e que preciso conhecê-lo…
Sucedem-se os sonetos: volumoso
parece ser o veio… Em breve, o selo
Ciência do Acidente dum Mattoso
febril publica a praga, o berro, o apelo:
Entre uma “Centopéia” e uma “Geléia
de rococó”, completa “Paulisséia
ilhada” a trilogia que hei criado…
Começa a nova fase, que não finda
nos mil, nem nos dois mil, pois muito ainda
virá calar quem quis me ver calado…
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SONETO REMONTANDO A 2000
(Glauco Mattoso)
Publico “Panacéia” e já preparo
um disco só de letra musicada —
Mas algo em minha vida fica claro:
sozinho, tanto verso vale nada…
Poetas querem musa, que, não raro,
seria a própria esposa, a própria amada,
alguém com quem conviva e que ele, avaro,
possua para si e jamais se evada…
Um cego só teria tal parceiro
se fosse mago, bruxo ou feiticeiro,
ou tenha, dos espíritos, a ajuda…
Parece ser o caso, pois, mal vira
o século, um nissei chamado Akira
me chega, feito um anjo, e a vida muda..
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SONETO 951 NATAL
(Glauco Mattoso)
Nasci glaucomattoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.
Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.
Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.
Mas não compenso, nem que o gozo esguinche,
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.
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Poética Urbana. © 2014.