Connect with us

Primo

Published

on

CassioZanata

Primo

Hoje andei à procura de sua casa, onde brincávamos quando meninos. Sou um desses sujeitos estranhos que de vez em quando fazem isso: visitam lugares que tiveram algum – no caso, muito – significado na vida.

A casa não existe mais. Sei que o pessoal deve estar cansado de lamentos falando de casas que desapareceram, que é o fim de uma cidade, que estão destruindo nossa memória, onde vamos parar etc, mas na verdade meu incômodo foi pouquinho maior que esse.

Na verdade, não só a casa não existe mais, como a rua também não. A rua inteira. E a de trás e a da frente, também não. Em seu lugar, construíram um complexo com quatro torres de escritórios que… ah, preguiça, não quero falar sobre isso.

Jogávamos bola na rua. As traves eram qualquer coisa – pedras ou latas ou palitos de sorvete ou camisetas. Tinha o time com camisa e o sem camisa. Hoje nenhum item do uniforme pode coincidir, determinação da Fifa. Que deve entender melhor do assunto, pois daqueles meninos, que nunca ligaram para isso, nenhum vingou no futebol.

Desenhávamos os limites da área, o meio de campo, a linha lateral, tudo com as mesmas pedras que, antes de virarem traves, riscavam o asfalto feito giz. Bem, escrevíamos uns palavrões no asfalto também. E os poucos carros que passavam interrompendo os clássicos eram alvos de vaias.

Também jogávamos taco na rua. Não há aqui espaço suficiente para explicar a quem não sabe, o que é taco e seu complexo funcionamento. Digamos que é o beisebol dos pobres, com regras próprias que variam (pelo menos variavam) de bairro para bairro.

Andei por aquela rua onde admirávamos as mulheres do alto (?) dos nossos dez anos. Lembro de você ter ouvido seu pai dizer que o encantamento com elas não diminuía com a idade, ao contrário, ficava cada vez maior. Ficamos muito impressionados com isso e meio sem entender (não que a gente entenda hoje). As mulheres de bunda grande chamavam particularmente nossa atenção. Quantos mais generosas as ancas, mais gostávamos. Ficamos mais rigorosos nesse quesito?

No assunto cigarro, você seguiu em frente por alguns anos, eu não. Fumávamos os sem filtro, eram mais baratinhos. Pobres pulmões em formação. Teve uma vizinha que nos delatou à sua mãe, disse que nos viu fumando na rua. Ela não disse toda a verdade: não fumávamos, tentávamos. Eu, pelo menos, nem tragar, tragava. Não me lembro se sua mãe nos castigou, ela não era tão brava como a minha.

Delatar as torres que aniquilam bairros, que é bom, ninguém se atreve. Dedurar o fim das traves de pedras, do futebol de rua, dos jogos de taco e da memória que só ficou na memória, necas.

O mundo é injusto, primo. Já era naquele tempo. Mas nada de ficar falando do passado, de coisas que não existem mais. Foco no futuro. Olho no porvir. Falando nisso, choppinho amanhã?

__________________________________________________________________________________________________________
Cássio Zanatta é natural de São José do Rio Pardo, o que explica muita coisa. Escreve crônicas há um bom tempo – convenhamos, já estava na hora de aprender. © 2014.

Continue Reading

Copyright © 2023 The São Paulo Times