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Quando os livros vão ao cinema

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Quando os livros vão ao cinema

O filme é pior que o livro. Esta é uma das máximas infalíveis para uma conversa pseudo-intelectual de mesa de bar. Mas é injusta, porque não é verdadeira, porque são duas linguagens distintas e, portanto, não podem ser comparadas igualmente.

Na literatura, cabe ao leitor “desenhar” em sua imaginação aquilo que está dito ou não. No cinema, todas as informações devem estar visíveis e audíveis. Sempre me perguntei como um cineasta resolveria o maior mistério da literatura brasileira: Capitu traiu ou não Bentinho. E de antemão já considerarei injusta qualquer tentativa de representar os olhos de ressaca da heroína de Machado de Assis. Talvez por isso, muitas adaptações cinematográficas caiam em desgraça dos fãs, porque sejam incapazes, como qualquer tentativa de representação, de repoduzirem exatamente aquilo que imaginamos. Daí, as hordas revoltosas de seguidores de O Senhor dos Anéis porque um anão se veste de verde e não de flicts.

Porém, essa relação não precisa ser conflituosa. As aventuras de Pi são um bom exemplo disso. A leitura do livro não exclui a experiência de assistir ao filme e vice-versa. No livro, há uma maior ênfase nos episódios anteriores ao naufrágio. No filme, a sobrevivência do personagem ganha um espetáculo visual que só o cinema é capaz de oferecer. Com as ferramentas visuais que possuía, o diretor Ang Lee agregou a história original uma outra beleza.

O mesmo vale para o clássico dos anos 90 Alta Fidelidade de Nick Hornby, responsável pela mania das listas, inclusive do site BuzzFeed, e adaptado para o cinema por Stephen Frears. Os atores e o roteiro conseguem incorporar a proposta do livro, mesmo que o cenário tenha substituído Londres por Los Angeles. Mas assistir ao filme não impede de aproveitar a narrativa talentosa de Hornby.

Em outros casos, o livro é um ponto de partida para algo novo. Quando Francis Ford Coppola transpôs o Coração das Trevas de Joseph Conrad da África colonial inglesa para a guerra do Vietnã, reescreveu os episódios, reconstruiu a história, mas encontrou na guerra americana na Indochina um paralelo para as mesmas preocupações que o britânico estabeleceu setenta anos antes. Da mesma forma, quando Walter Salles trouxe a disputa entre a tradição e a liberdade das famílias das montanhas albanesas de Abril Despedaçado para o nordeste brasileiro. Nestes casos, o cinema só reafirma a universalidade de seus inspiradores.

E há ainda o caso dos livros que devem agradecer muito ao cinema. Aqueles em que o livro, é sim, pior que o filme. Como o Lado bom da vida. A história do casal bipolar interpretado por Jenniffer Lawrence e Bradley Cooper é inspirado num livro chatíssimo quase que exclusivamente sobre torcer para os Eagles. Neste caso, o roteirista soube potencializar os personagens, principais e secundários, e explorar aquilo que no original pouco interessava ao autor.

Outro exemplo é Up in the air de Walter Kirn, cujo filme de Jason Reitman e o livro ganharam a lastimável tradução de “Amor sem escalas”. Em plena crise econômica de 2008, Reitman reescreveu o personagem principal, dando ênfase ao seu emprego de “demissor terceirizado”. A busca incessante por milhas aéreas do personagem no livro era uma espécie de vingança contra o trabalho que detestava se transformou numa espécie de prêmio de consolação, no filme, por sua escolha pelo isolamento social. Neste caso também, o filme é melhor que o livro.

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Miguel Stédile é zagueiro, gremista, historiador e dublê de jornalista. © 2014.

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