Desculpe o atraso, mas podemos falar de Aquarius?
Ao leitor que encontre pontos de outros textos repetidos aqui peço perdão. Pelo barulho que fez, Aquarius deve ter sido…
Ao leitor que encontre pontos de outros textos repetidos aqui peço perdão. Pelo barulho que fez, Aquarius deve ter sido discutido à exaustão, mas não costumo ler críticas de outros autores sobre as obras das quais eu quero falar na coluna. É uma política própria para evitar desvios de opinião antes mesmo de começar a escrever. Dito isto, vamos em frente.
Aquarius, o novo filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, ganhou fama antes mesmo de estrear nos cinemas, quando seu elenco subiu ao palco do Festival de Cannes segurando cartazes denunciando o golpe no Brasil.
Assim, de uma hora para a outra, parece que todo cidadão de esquerda havia sido incumbido de ir assistir e gostar do filme. O que, no fim das contas, foi que aconteceu, mas não por sua atitude política, ou melhor, não por sua atitude política em Cannes; pois a história do longa já é, por si só, uma atitude política.
A motivação de Aquarius é a mesma do Cinema Novo e do Cinema Marginal: a crítica social. Aquarius é, afinal, um filme de esquerda, pois ao falar da especulação imobiliária, ele também coloca o capitalismo voraz na parede.
O filme conta a história de Clara (Sonia Braga), uma jornalista da alta classe pernambucana, aposentada e viúva, que mora sozinha no seu sossegado apartamento do edifício Aquarius, de frente para o mar na praia de Boa Viagem, no Recife. O conflito começa quando Clara recebe a visita de Diego (Humberto Carrão), o novo dirigente da construtora que já comprou todos os outros apartamentos do edifício, e planeja derrubá-lo para construir um novo prédio no local. O problema é que Clara não tem interesse algum em se mudar, confortável que está levando a vida no seu bom e velho apartamento.
Até onde Diego estará disposto a chegar para tirá-la de lá? E Clara, até que ponto será capaz de aguentar? Essas são as perguntas que nos deixam com a pulga atrás da orelha durante todo o filme, uma angústia que é construída de forma magistral pelo diretor, sem forçar a barra e seguindo um roteiro brilhante.
Sonia Braga está linda e faz uma atuação impecável, representando ora a leveza, ora a densidade que a personagem demanda. Mas o que seria dela se não fosse seu antagonista que fez um curso de Business no exterior? Hilário e odioso, Humberto Carrão também acerta o alvo interpretando um ambicioso jovem diretor de empresa.
Mas a história não para por aí. Se o último longa do diretor havia se chamado O Som Ao Redor, Aquarius poderia muito bem se chamar O Som Ao Redor de Clara, pois tudo gira em torno dos “barulhos” da sua vida, de sua relação com o apartamento e a construtora, com seus três filhos e, finalmente e muito importante, com a música. Ainda jornalista, Clara escrevia sobre música, e sua relação com ela ainda é intensa, assim como ela quer fazer parecer a de seu sobrinho, numa das falas mais deliciosas do filme: “Toca Maria Bethânia, mostra pra ela que tu é intenso.”
O filme é cheio dessas tiradas que se elevam acima dos diálogos triviais – mas não por isso menos importantes.
Sua casa é cheia de vinis. Ainda no início da história, ao dar uma entrevista falando sobre mídia física versus mídia digital, Clara tira um disco da estante e conta uma história sobre como ele foi parar na sua mão. Em seguida diz algo como: “Entendeu? Isso é um objeto, e por isso ele é especial.” Isso me lembrou a história de um livro que comprei no Estante Virtual, ele chegou a mim com uma dedicatória feita pelo próprio autor, destinada a um amigo no Rio de Janeiro, e, ao abrir o livro encontrei uma carta desse amigo agradecendo a dedicatória. O autor, ainda por cima, era Liêdo Maranhão, pesquisador da cultura… recifense. Assistindo à cena de Aquarius, me lembrei do livro na hora. Coincidências da vida.
Outro ponto alto reafirmado em Aquarius é o talento de Kleber Mendonça em gerar tensão em diálogos aparentemente soltos. A cena da conversa de Clara tomando cerveja com suas amigas é ótima, e sabemos de cara que ela deve preceder algo importante. Assim como o almoço de domingo entre ela e seus filhos, onde uma simpatia vacilante vai se tornando aos poucos um grande desentendimento. A cena em que estão vendo o álbum de família e a empregada da casa chega para mostrar a foto do próprio filho é de cortar o coração. Verdadeira. Pura. Linda.
E por falar em empregada, vem à mente também uma outra crítica social bem presente no filme. Numa conversa sobre a velha empregada da família em outros tempos, alguém diz, em tom resignado: “É assim mesmo. A gente explora elas, elas roubam a gente de vez em quando e vão embora.”
Aquarius é isso. Crítica social nua e crua, disfarçada numa boa história. Ah, e ainda tem a cerejinha do bolo: Irandhir Santos. Pois é. É quase um manifesto cinematográfico para o #OcupeEstelita, assim como foi Terra em Transe para o golpe de 64.
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