Manoel
Manoel escreveu: “O homem estava parado naquele lugar mil anos sem orelhas.” Meu tio detestou: “Como pode, alguém…
Manoel escreveu: “O homem estava parado naquele lugar mil anos sem orelhas.”
Meu tio detestou: “Como pode, alguém ficar mil anos sem fazer nada? E ano por acaso tem orelha?” E continuava sapecando açúcar no maracujá, chacoalhando a colher no mesmo ritmo da negação da cabeça.
Manoel insistiu: “Eu queria crescer pra passarinho.”
O professor, que achava tudo depois do Simbolismo uma porcaria só, desaconselhou o poema, fechou o livro com estrondo, deu o assunto por encerrado e perdeu de vez o critério para corrigir.
O poeta de araque riu de Manoel:
– Olha isso: “O homem que possui um pente e uma árvore serve para poesia.” Faça o favor. Isso não é arte nem hoje, nem nunca. Perto de Baudelaire, Blake, Borges, é lixo.
Achou que venceu. Deixa ele.
O leitor que havia lido de tudo, leu uma, duas vezes: “Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores”. E deu seu pitaco: “Ah, assim até eu sou poeta.”
Mas quem falou que leitor não pode ser poeta?
Confusão maior foi com a menina bonita. Eu olhando pra ela, ela pra outra mesa. Eu pedi cerveja; ela, coquetel de frutas. Tentando achar seus olhos, levei mais drible que marcador do Garrincha. Fui pegar na mão, fugiu feito bagre ensaboado. Arrisquei tudo em Manoel: “Quando eu nasci, o silêncio foi aumentado”. Ela riu, sem entender. Mas eu entendi que a menina não seria ela.
Demorou uns bons anos, anos de prática e preparação… PAM! Juro pelo meu pai, minha mãe, Manoel e todos os poetas, que neste exato instante uma rolinha caiu aqui no chão do quintal. Corri até ela, estava deitada de lado, piscou três vezes os olhos assustados, virou-se de costas, juntou as patas e endureceu. Chamei Pedro para a gente enterrar a delicadeza debaixo do limoeiro.
Dormir pra sempre debaixo de um limoeiro, sob seu perfume e pétalas tão pequenas, não é má ideia.
“Andar à toa é coisa de ave. Meu avô andava à toa.” Pois então. O bicho foi para o mundo de Manoel.
Depois veio um silêncio onde apenas teve vez um ou outro escapamento. Não sou poeta, daí isso tudo ter ficado meio meloso. Melhor a explicação definitiva do Ox, no “Pontos de Fuga” do Milton Hatoum:
“Às vezes a poesia tem alguma razão para não ser entendida.”
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