
Tatuagem
Guerras, golpes, revoluções e ditaduras rendem histórias infinitas. Já pensou parar pra contar quantos livros e filmes foram escritos sobre, por exemplo, a Segunda Guerra? Impossível. Todo ano aparece uma obra nova incrível tratando do tema de uma forma diferente, sob um novo ponto de vista. Deveria existir um prêmio para eleger as melhores produções falando dos determinados períodos indigestos da história. Bom, se houvesse, Tatuagem (2013) certamente seria um dos grandes vencedores do Prêmio Ditadura Brasileira.
O primeiro longa escrito e dirigido por Hilton Lacerda – que já soma pelo menos uma dezena de obras no currículo de roteirista -, mostra a improvável história de amor de Clécio (Irandhir Santos) e Fininho (Jesuíta Barbosa). Um é diretor de uma trupe de teatro que vive e prega a liberdade sexual. O outro é um rapaz de 18 anos, criado numa família conservadora, que está servindo o exército e descobrindo sua sexualidade.
O filme é um soco na boca do estômago e ao mesmo tempo exala uma sensibilidade assustadora. São tantos pontos altos que é difícil até decidir por onde começar. Vamos no óbvio? A atuação de Irandhir, que já não precisava provar mais nada pra ninguém, no papel do libertário Clécio, é magistral, mas Jesuíta Barbosa não fica por baixo – a não ser na cama -, fazendo Fininho emergir de uma inocência provinciana para um ambiente de anarquia sexual. A curta cena de sua família sentada na sala é mágica, de um silêncio, tanto auditivo quanto visual, essencial, destoante de todo o resto do filme, como um pedaço de muro branco em meio a um milhão de grafites gritantes e geniais. É impressionante como, em poucos segundos e com um brevíssimo diálogo, Hilton Lacerda consegue construir e atribuir tantos valores ao personagem Fininho, pelo simples contraste com a realidade alvoroçada da trupe de teatro Chão de Estrelas à qual estamos mergulhados. E que nome para uma trupe de teatro lado B, não? Chão de Estrelas. Lembra o comentário de Millôr Fernandes sobre as poesias mundanas de Manoel de Barros: “O apogeu do chão.”
Pois Tatuagem é isso, uma riqueza de sutilezas infindável. Até mesmo as intensas e detalhistas cenas de sexo entre Clécio e Fininho parecem milimetricamente calculadas para chocar as pessoas certas – muita gente abandonou a sessão no cinema ao se deparar com elas. É como se propusessem: “se você ainda não está preparado para isso, é melhor sair mesmo, porque também não está preparado pra assimilar o filme”.
Esporadicamente, soltas durante o filme, estão as apresentações da trupe, sempre comandadas por Clécio. São um espetáculo à parte! Tive o prazer de poder perguntar pessoalmente ao diretor sobre elas. “E a Polka do Cu, hein? De onde veio essa ideia?” E, surpreendentemente, ele me disse que eram os atores que criavam e ensaiavam essas apresentações, sem nenhuma interferência dele, inclusive a Polka do Cu. Se isso não é arte pura, eu não sei o que é.
Uma história curiosa e interessante bem contada, um contexto cultural e social pesado, real e muito próximo de nós. Atuações redondas, trilha incrível, visual de tirar o fôlego. Tatuagem é tudo isso. Uma obra ousada, um filme lindo.
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Roberto Stahelin, é publicitário, mas está esperando sair seu primeiro roteiro produzido ou livro publicado para mudar de status.