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Esse dia chegou

Picture of Cassio Zanatta

Cassio Zanatta

     A meu favor, digo que estava atrasado e não quis acender a luz do quarto para não acordar Beatriz. Fato é que saí para a rua vestindo a camisa do pijama. Raramente uso pijama, mas tem feito frio de manhãzinha e eu não sei dormir com tanto cobertor – sou dessas almas perturbadas que se mexem muito durante a noite, costumam expulsar as cobertas e acordam com a garganta doendo.

     Para minha sorte, continuou frio de manhã. Assim, tive de pôr um casaquinho sobre a camisa, espero que ninguém tenha percebido o pijama por baixo.

     Pois, então, esse dia chegou: me transformei de repente num desses velhinhos que vão à padaria, à farmácia ou levam seu cachorro para passear de pijama. Aquela figura recorrente em filmes de Jacques Tati ou documentários sobre a pacata vida dos bairros antigos. Não cheguei ao ponto de sair de meia e chinelos, como fazia meu nonno Ireno. Mas é questão de tempo.

     Já me vejo imitando os trejeitos dos velhinhos e suas estranhas atitudes. Por exemplo, proibidos de fumar pelo médico, saem com um cigarro apagado, fazendo todo o gestual como se fumassem: levam o cigarro à boca e expelem a fumaça imaginária num sopro vazio, um pffffiu de araque. Também costumam falar sozinhos, na falta de companhia ou de quem tenha paciência para assuntos que não vêm mais ao caso. Um ou outro até discute consigo mesmo, e se senta emburrado no banco da praça, braços cruzados a enxotar as pombas com o pé.

     Não dura muito e estarei contando aos mais jovens sobre bandas, Copas e acontecimentos anteriores a eles nascerem. Vou contar que a gente preenchia cheques e tinha que esperar um tempão para que a telefonista completasse a ligação intermunicipal. Que ter linha de telefone era investimento. Que o Estadão de domingo tinha 300 páginas, 8 cadernos, duas páginas inteiras só de turfe e pesava uns 2 quilos. Que fui assistir Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus juntos, ao vivo, e peguei um elevador com Elizeth Cardoso. Já troquei 3 palavras com Rubem Braga e 20 com Fernando Sabino. Já estive numa mesa de bar perto do Luis Fernando Veríssimo e do Tom – como assim, meu jovem, “que Tom”? Até já dei um lançamento para Roberto Dinamite – fui assistir a um treino do Vasco nos idos de 75, 76, eu estava atrás do gol, peguei uma bola fora do campo e chutei na sua direção. Ele a matou na coxa e fuzilou para as redes. Sim, fizemos uma bela dupla.

     Direi ainda à moçada sobre coisas que não têm mais serventia: máquinas de escrever, câmeras fotográficas, coador de café de pano, aparelhos três em um, bailes com luz negra, o bambolê, discos de vinil (se bem que esses ressuscitaram). Talvez eles se aborreçam um pouco como eu me aborrecia com as lembranças dos velhinhos da minha mocidade.

     Então, esse dia chegou. O dia de evitar doces, maneirar no sal, ter passe livre no metrô, pagar meia entrada em teatro e cinema, se espantar com o sumiço das cinco casas do bairro que viraram um prédio de 30 andares, se atrapalhar com os nomes dos mais novos da família, esquecer o que precisa e se lembrar do que não precisa, e, por fim, sair à rua de pijama.

     É. Daqui por diante, vou ter de acender a luz do quarto atrás de uma camisa decente e acordar Beatriz. Tadinha.

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