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Não sei dançar

Picture of Cassio Zanatta

Cassio Zanatta

Uns tomam éter, outros, cocaína, dizia o poeta. Eu tenho mulher e filha bailarinas. Não sei o bem que fiz para merecer isso, tantos pisões e topadas tenho distribuído nesta vida. Deus tem um senso de humor interessante. Que também o tenha as pobres que fiz sofrer com minha falta de jeito.

     Uma vez, uma inocente menina do meu prédio me convidou para ser seu par na valsa de debutante. Isso, no tempo em que havia inocência, convites e valsas de debutantes. Recusei, vejam a grosseria. Não sei se ela chegou 

a me perdoar, mas, menina bonita dos 15 anos, acredite: foi melhor assim, tenho três pernas esquerdas e elas não se entendem.

     Fato é que tenho duas bailarinas em casa. O que dá ao dia a dia uma graça inesperada. Um atender ao interfone se reveste de encanto. Salpicar açúcar no mamão parece pedir um movimento de Tchaikovsky. E com que 

delicadeza minha filha derruba o copo e espalha suco na mesa. Só um ostrogodo não se emocionaria. Sou um espectador privilegiado, não pago ingresso – no máximo, contas de água, luz e gás. Tampouco bato palmas, não quero que elas percebam o quanto brilham nas menores coisas.

     Só morro de pena quando, em alguma festa, elas me tiram para dançar. Ô dó. Que maçada ver a arte das duas confinada em um medíocre “dois pra lá, dois pra cá”. Sinto-me como se estivesse em uma partida de futebol decisiva e recebesse aquele lançamento do craque do time e estragasse o lance numa furada bisonha.

     Já tentei estratégias. Uns gorós, por exemplo. Mas o que se ganha em desinibição, perde-se em equilíbrio – e aí, levou quem trouxe. Já tentei aulas. Mas para o bem da dança e a volta da seriedade na sala, seriamente comprometida com minha descoordenação, desisti. 

     Beatriz é que nunca desiste: ah, é só a valsa romper na festa que a pobre já me puxa para o meio do salão, esquecida de que à sua frente não está um nobre duque austríaco da corte de Sissi, a Imperatriz, mas um tosco rio-pardense. Ria, Deus, pode rir.

     Sabemos quem inventou o telefone, o carro, o Facebook, e que a folha-seca nasceu dos pés de Didi. Mas quem foi o iluminado que inventou a dança “cada-um-por si”, os pares separados, sem passos marcados? A quem nós, pernetas do mundo, devemos agradecer? Sim, porque graças a esse gênio, podemos, digamos, expressar nossa ““arte”” (assim mesmo, com aspas duplas) a uma distância segura, poupando calos e vexames.

     Mas o melhor mesmo é deixar a dança para quem por ela foi abençoada. Que minhas duas bailarinas desfilem sua arte livre dos bárbaros. Que a mim seja concedida apenas a permissão de abrir a boca, arregalar os olhos e me deixar guiar por elas. 

       Que os braços e pernas e quadris das minhas bailarinas me levem, me corrijam, me encantem nos bailes como na vida.

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