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O tempo parou

Picture of Cassio Zanatta

Cassio Zanatta

     O relógio da parede da sala parou. Me esqueci de dar corda e ele não admite pouco caso: detesta atrasos (contra eles foi criado) e cruzou os braços em protesto. É um senhor de mais de 100 anos, um norte-americano orgulhoso que, se contrariado, convoca horas e minutos para entrarem em greve. Deve ser um dos raros americanos anarquistas.

     Seu silêncio deixa mais insuportável os não-acontecimentos do domingo: ninguém passa na rua, nenhum escapamento estoura, as britadeiras dormem, os aviões não riscam o céu, só as sirenes das ambulâncias mantêm o entusiasmo. Seus badalos certeiros fazem falta à ordem do mundo.

    Onde estão as crianças da escola que, durante o recreio, disputam a bola num campeonato de gritos? Estão trancadas em casa, presas em casa, pondo fogo nas cortinas, dando canseira no gato, destruindo o quarto. Só nos chegam os gritos das broncas das mães.

     Parece que para sempre serão três e quinze. O tempo pausou o atropelo.

     Cadê o caminhão de gás, o canto esgoelado do doidinho do bairro que imita o Roberto Carlos, o enche-e-esvazia das caçambas nas ruas, sons incômodos que hoje fazem falta? Eis que, em solidariedade, a luz também se deu o direito de faltar. Você sabe, aquela cumplicidade que as coisas têm umas com as outras. Se bem que ao relógio motivos não faltam.

     Alguém esbarrar e tirá-lo do prumo é um deles. Se esquecer de limpar o pó do vidro é outro. Nem vamos falar da ingratidão da família em procurar a hora certa no celular e não mais na parede. Qualquer dia, ele resolve badalar 18 vezes em seguida, talvez se arrisque a tocar a Macarena ou um foxtrote das antigas, só para ser notado. Comigo não corre risco: cada vez que passo por ele, dou uma espiada. Mais para saber se ele vai bem, se não está muito inclinado, do que para me inteirar das horas.  

     Como ele, não posso ir a lugar algum, tenho que entregar o texto ainda hoje. Acho que vou seguir sua casmurrice: às favas as horas e prazos. Comerei quando tiver fome, dormirei quando o sono vier. Confio à Beatriz a função de me dar corda, tenho enfrentado alguns enroscos no maquinismo.

     Cada vez que vou dar corda no relógio, sinto que substituo meu pai. A vida toda foi ele o encarregado da função: encaixar a borboleta nos furinhos das horas, dos minutos e acertar as horas. Eu ficava observando seu jeito, aprendendo, até que a vida dele parou e, agora, dar corda no tempo é responsabilidade minha. Giro a borboleta no furo da esquerda para a direita e aciono as horas. Giro o da direita para a esquerda para impulsionar os minutos. Constate que, politicamente, o moço é de centro, busca o equilíbrio de forças, não gosta de extremos nem quer tomar partido – um isentão, como se diz hoje em dia.

     Dou impulso no badalo. Fazemos as pazes, ele me perdoa o esquecimento e retoma seu ritmo paciente. Com o tempo, o tiquetaque perdeu o sotaque ianque, se naturalizou rio-pardense. Eis que um urubu passa rente à janela, duas motos passam tirando racha na rua, alguém tosse no andar de cima e o mundo torna a obedecer ao seu comando.

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