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Os que se foram e os que ficaram

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Marcella Izzo

Alguns se foram. Levaram consigo os velhos acontecidos, os coletes, lenços manchados e quebra-queixos. Outros insistem: alguns móveis, os tocos das velas nas gavetas, os navios que se equilibram na linha fina do horizonte e essa inexplicável ambição dos homens.

     Ficaram algumas roupas, muito poucas, algumas só servem às lembranças. De puro respeito, as traças as pouparam. Ninguém as ousa vestir: os gestos não seriam os mesmos, os passos dariam em tropeço. O sentido se foi, o movimento cessou, restou um bilhete dentro do bolso com um número de telefone escrito a lápis, sem nome algum.

     As formigas aproveitaram o sumiço dos chinelos para sobreviver: aí estão, aos montes, em eterna procissão. A lagartixa segue imóvel no canto da sala onde o teto encontra a parede. Já as abelhas sumiram do mundo – dizem os estudados que estão sendo exterminadas pelos agrotóxicos. E quem agora vai semear as cores e olores?

     Os bancos da praça ficaram, mas, hoje em dia, poucos neles se sentam. Ficam os bancos, vão-se as bundas. Na confeitaria que resiste, o refresco de abacaxi amarelo-limão de tanto corante se foi, junto com o amendoim japonês a granel, mas o canudinho de doce de leite continua sobre o balcão, para a esperança das crianças e das poucas abelhas que insistem.

     O cigarro de palha desapareceu. O sem filtro, aquele que era só um toquinho, amarelava os dedos e, ao ser aceso, às vezes chamuscava as sobrancelhas, baubau. Deixou alguns pulmões aniquilados e uma impregnação pela casa que só piora as ressacas. No silêncio das madrugadas os espectros tossem.

    O ponta-direita sumiu. O Biotônico sumiu. O leite no saco plástico, o ioiô estufado com serragem, o carroceiro que vendia gelo, o preenchimento dos cheques. Mas o general de pijama, para nossa aflição, está de volta: já vestiu a farda e pendurou no peito medalhas de feitos duvidosos. Nossa esperança é que o cachorro suma com o quepe, sequestrando sua autoridade, e o enterre ao lado de alguns ossos que perderam o sabor e o interesse.

     Caso estranho é o dos meus pais, que ao mesmo tempo se foram e ficaram. Um túmulo à beira do rio diz que se foram; uma música que me alcança na esquina diz que não; esse relógio de pulso na gaveta ousa dizer que sim, alguns gestos meus, dos meus irmãos e meus filhos, que não. A vista de certas janelas e palavras que ninguém mais usa me convencem em definitivo de que ainda estão.

     Já foi a formatura, o primeiro amor, 14 Copas, o rojão que deu chabu, o sagu de sobremesa, as espinhas no rosto (como insistiam), os vícios inocentes, muita história acontecida e inventada, e as descobertas de maior espanto.

     Nem tudo faz falta ou deixou saudades, sejamos francos. O suspiro tem dúvida se é resignação ou saudade. Resta essa sensação de que tudo é inacreditável.

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